Mentira tem perna curta... e dança!
Por Ana Kessler
Sexta-feira passada me deparei com uma situação com a qual nunca havia lidado: uma mentira arquitetada. Um plano infalível digno do Cebolinha da Turma da Mônica. Fiquei imaginando o que me espera na adolescência da minha pequena, muitas vezes ousada e indomável e, principalmente, como não deixar esse desvio de conduta chegar até lá. Qual a fórmula?
Ana Bia foi parar na enfermaria da escola com dor de cabeça. Ligaram para o meu trabalho e conversei com ela para saber como se sentia. Estava bem, só um pouco indisposta. Antes de desligar, porém, perguntou: “Mãe, se eu melhorar até o fim da tarde, posso fazer a aula experimental de Dança Kids? E se eu gostar, você me matricula no ano que vem?”. Uma das coleguinhas que ela ama, a Lelê, faz a tal dança e não foi a primeira vez que ouvi este pedido.
A prática iniciava às 18h e terminava às 19h, e especialmente naquela noite eu tinha um compromisso e não poderia faltar. “Terá que ficar para uma próxima vez, Bia”, neguei. Houve um tímido protesto, mas até que ela aceitou numa boa.
Às 17h45 saí do trabalho e já estava a caminho da escola para buscá-la quando toca o telefone. “Mãe, a professora de História e Geografia pediu que a gente ficasse até mais tarde para terminar um trabalho, ok? Ah, um negócio lá que não deu tempo da turma acabar. Mas mãe, ela mandou! Nós temos que ficar mais uma hora... Ela me deixou vir aqui no orelhão te avisar. Tenho que voltar para a aula, não posso mais falar, beijo, tchau!”, desligou.
Muito estranho. Em primeiro lugar, isso nunca aconteceu ao longo do ano, não seria agora, faltando uma semana para o término das aulas que a professora seguraria os alunos até mais tarde. Segundo, a coordenação da escola é organizadíssima, se fosse o caso teria mandado um comunicado excepcional, jamais faria os pais ficarem plantados uma hora extra no saguão sem aviso. Terceiro, como assim a professora libera os alunos para “avisarem os pais” do telefone público? Tudo muito improvável.
Cheguei lá e a moça que toma conta das crianças me recebeu com o sorriso de sempre: “Olá, tudo bem? A Ana Beatriz já está na aula de dança”. Óbvio. “Obrigada, qual o andar do ginásio mesmo?”, não sabia se ria ou se chorava. No fundo, estava chateada. Onde já se viu mentir e enganar a mãe assim?
No ritmo da música, meninas rebolavam e faziam passinhos coreografados. Entre elas, Ana Bia e sua vitória momentânea. Mal adentrei o lugar, Lelê me avistou e cutucou-a. “Xiiii...”, ouvi de longe. Passei por elas e fui falar com a professora. Relatei o ocorrido e me desculpei, mas infelizmente a Bia não continuaria a aula para aprender uma lição. E a lição única foi: mentiras são inadmissíveis.
Perder o direito de assistir à novela Carrossel naquela noite fez apenas parte do castigo. O sermão a chateou, ela ouviu até o fim intercalando com mil pedidos de perdão. Agora, o que a tocou profundamente e creio ter sido o mais eficiente corretivo foi enxergar nos meus olhos a decepção. Filho nenhum suporta desapontar seus pais.
A Bia sempre teve, desde pequenina, um espírito guerreiro e tenaz. Persistente, quando bota uma coisa na cabeça, só sossega quando consegue. O que pode ser bom e ruim. Penso que o meu trabalho é construir barreiras, sem desvios, para que essa característica se transforme em qualidade lá na frente. Limites, regras claras, punição quando quebradas, muita conversa, paciência, transparência e sobretudo amor. Essa foi a receita que intuitivamente usei hoje. E você, que receita usaria?
*Texto publicado originalmente no blog De Mãe Pra Mãe, projeto Unilever/MSN (2012). Ao longo de dois anos, as jornalistas Ana Kessler, Adriana Teixeira e Mariana Della Barba escreveram semanalmente sobre maternidade real, sem filtros e com muito amor.
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