Bullying, mordidas e ostracismo
Por Ana Kessler
A novela Carrossel tem abordado um assunto ótimo: a desavença entre crianças. E quando os pais se metem na briga para proteger seus filhos. No enredo, Jorge, garoto rico e esnobe, humilha e ofende Cirilo, menino negro e de alma inocente. Ambos gostam da patricinha Maria Joaquina, alvo da disputa. E pivô de muitas confusões.
A Ana Bia nunca brigou na escola. Mas já apanhou várias vezes. Na creche, em Porto Alegre, aos 2 anos, ela era a preferida do Biel, um menino da mesma idade, o dobro do tamanho, que não sabia controlar a paixão descontrolada que nutria pela pequena. E a mordia. No braço, no ombro, até no rosto, ficava a marca da arcada dentária. Era o legítimo amor aos pedaços. Todo dia ela vinha pra casa faltando um, junto com um bilhete da professora ou da diretora pedindo desculpas e jurando que estavam dando toda a atenção ao caso.
Uma manhã fui levá-la na escolinha e presenciei uma cena que deu dó: ao entrarmos no saguão, lá de longe o tal Biel avistou-a e veio reto na nossa direção com os bracinhos abertos, “Bia, Bia, Bia”. A pobrezinha, que tinha ido até o cabideiro pendurar a mochila, jogou tudo pra cima, fez meia volta e se agarrou nas minhas pernas berrando: “Cóio, cóio!!!”, desesperada.
Peguei-a no colo, ela passou os braços no meu pescoço e enfiou o rostinho ali. O menino, com um sorriso de adoração, ficou olhando para a minha filha, esperando o momento de “recepcioná-la”. Excesso de amor também machuca. O que, como mãe, se deve fazer numa hora dessas?
Já na pré-escola, aos 5 anos, no Rio, a surra não era física, mas moral. A turma era composta de oito alunos, quatro meninos e quatro meninas. No recreio, enquanto os super-heróis se engalfinhavam atrás de uma bola, as princesas brincavam em grupo. Menos a Bia. Ela, que sempre amou bebês, ia para o berçário para “ajudar a cuidar” dos bebezinhos.
Uma vez, duas vezes, vá lá. Mas todo dia? Achei aquilo estranho. Então descobri que sofria ostracismo, uma das coleguinhas instigava as demais contra ela, simplesmente decretava: “Hoje ninguém brinca com a Ana Beatriz”. E lá se ia a minha filhota dar seu jeito de ser feliz. Como orientar num caso assim?
São Paulo, 2012, segundo dia de aula. Ana Bia chega em casa e me conta: “...então a menina parou do meu lado no corredor, me olhou e disse ‘sai daqui que eu não gosto de você’”. E assim foi durante meses. "Mãe, a Fernanda nunca quer sentar comigo. Eu peço pra sentar com ela e ela diz 'não'. Lembra que eu escrevi no meu diário que ‘pessoas boas devem amar seus inimigos’? Então, a Fernanda é boa. Ela tem que me amar!". Ana Bia insistia na amizade. Estimular ou desestimular, o que você faria?
Os pais devem se meter nas brigas dos filhos? Vou contar como agi nos três casos, quem sabe pode ajudar pais e mães na mesma situação. A primeira pergunta que me faço numa hora dessas é: “Minha filha é capaz de resolver sozinha?”. A segunda atitude, checar a informação, ou seja, ouvir o outro envolvido. Por que uma mesma verdade pode ter muitos lados.
Na creche, em Porto Alegre, tive que entrar no circuito. Conversei com a professora, chamamos a mãe do Biel e sentamos as três para traçar um plano de ação. A mãe intensificou as conversas em casa sobre ser mais bacana dar abraços do que morder, a professora redobrou a atenção e criou situações para que os dois convivessem em harmonia e eu fiz uma lavagem cerebral na Bia para sanar seu trauma e medo do guri, explicando que era excesso de amor e não maldade. E que logo ele ia aprender a domesticar sua força. Muitos band-aids depois, finalmente deu certo!
No Rio, a amiguinha que isolava era a mesma que, no fim do dia, estava agarrada nela com dedinhos entrelaçados de “melhores amigas”. A própria Ana Bia dizia não entender por que num momento era amada e, no outro, odiada. Aqui a conversa foi sobre dar limites e deixar claro o que era aceitável e o que não era. Propus um constante exercício de se colocarem uma no lugar da outra. De, nos momentos de crise, conversarem. E, em casos extremos, que ela, Ana Bia, levasse o caso à professora, pedisse ajuda. Sim, seria mais fácil eu resolver. Mas facilitar o caminho dos filhos não os ensina a crescer.
No último feriado, a Bia foi viajar para um parque aquático com a família da Fernanda. Estão unha e carne. Amor recente, mas amor verdadeiro como toda a amizade entre duas crianças é. Lembro direitinho do dia em que a baixinha me contou, com um sorriso largo e o peito inflado: “Adivinha quem sentou ao meu lado hoje?”. Eu, que havia questionado “Filha, com tanta criança para brincar, por que insiste nesta que não quer nada com você? A gente tem que gostar de quem gosta da gente”, sucumbi.
Mais uma vez, Ana Bia triunfava com sua persistência. E me ensinava uma lição universal que talvez se aplique a muitas desavenças por aí: “Ame quando a pessoa menos merecer, pois é nesta hora que ela mais precisa de você”.
*Texto publicado originalmente no blog De Mãe Pra Mãe, projeto Unilever/MSN (2012). Ao longo de dois anos, as jornalistas Ana Kessler, Adriana Teixeira e Mariana Della Barba escreveram semanalmente sobre maternidade real, sem filtros e com muito amor.
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