O Rio de Janeiro
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Meu nome é Sofia. Sofia do Rio. Não, não confunda com Del Río. Esse era o sobrenome do meu tataravô espanhol antes dele imigrar solitário para o Rio Grande do Sul. Conheceu uma nativa lá pros altos do rio Uruguai, em uma época que a fronteira dançava mais que bombacha em fandango, e acabou fincando sua impertinência em Cruz Alta, onde comprou extensas terras e muitas brigas. A maior delas, com um tabelião lusitano ultranacionalista que se recusou a registrar meus antepassados com o que atestou de “estrangeirismos nocivos”. Desde então, ficamos assim, abrasileirados.
Por essas coisas do destino, nasci em Porto Alegre e vim parar no Rio de Janeiro, a 1591 km de distância, 29 anos depois de gerada. Apesar de ainda não ter um lugar para morar, já me sinto em casa. É claro que durmo agarrada numa cuia de chimarrão, para não esquecer minhas raízes. Coisa que não seria difícil de acontecer, nesta cidade de sol, mar, chiados e caipirinhas.
Estou hospedada temporariamente na casa de uma amiga, no Leblon, só até achar algum cantinho. E um emprego, é claro. Ela disse que posso ficar quanto tempo quiser, desde que não demore muito. Ainda não definimos o “muito”, mas otimista como sou, acredito ser tempo suficiente para eu me erguer e decolar na vida. Minha meta é “chegar lá”, neste lugar que ninguém sabe onde fica, mas todos querem alcançar.
Queria poder dizer que sou gostosa, peituda, maravilhosa. Ao invés disso, nasci normal. Deus foi injusto, muito injusto comigo. Ou, no mínimo, pouco criativo. Parece que pegou um pincel e um potezinho de tinta marrom e disse: agora vou experimentar essa cor. Plim, me pintou inteiramente castanha, uniforme e sem degrades: cabelos, olhos, pelos do corpo, tudo. Só a pele ficou branca. Vai ver que acabou a tinta. Sou alta para a média brasileira, 1,69 m, mas se comparar com as suecas, sofro de nanismo. Magricela, nunca fiz dietas, tampouco regimes de engorda. E em hipótese alguma - perca as esperanças! - vou confessar que tenho celulite.
É um caso sério essa deformidade anatômica que aflige 99% das mulheres, afora entidades como Gisele Bündchen. Quem pode competir com elas? E com o Photoshop? Mês que vem eu vou começar um tratamento preventivo à base de massagens e ervas. Diz que é tiro e queda. Eu ia começar esta semana, mas não tive tempo de ir na consulta. Nem sobrou dinheiro para pagá-la. Mas mês que vem, eu vou.
Deveria existir um mês de verdade, chamado “Mês Que Vem”, entre todos os meses do ano, onde todas as coisas que a gente planejasse, ali se realizassem. “Vou estudar francês Mês Que Vem.” E quando Mês Que Vem chegasse, estudava-se. “Mês Que Vem, vou deixar de fumar”, e a partir daquela data, não mais se colocaria um cigarro na boca. “Mês Que Vem, vou acordar cedo, malhar todos os dias, voltar a pintar, e economizar um dinheirinho.” Seria o mês perfeito. E o calendário ficaria assim: Janeiro, Mês Que Vem, Fevereiro, Mês Que Vem, Março, Mês Que Vem, Abril.. Quando Mês Que Vem chegar, eu vou anexá-lo ao meu planejamento anual. Não é uma ótima?
Meu Deus, falando nisso, janeiro já chegou e eu nem vi dezembro passar! O novo ano já iniciou e eu continuo assinando cheques com a data do ano passado. Essa coisa de renovação de agendas e atualização de rotinas quebra todo o meu ritmo. Minha mãe diz que, subconscientemente, estou me recusando a crescer, “negando o novo”. Negando, eeeeu? Nada disso, eu disse pra ela, adoro novidades, já fiz até a minha listinha de “este ano eu vou...”. Ela rebateu que, todos os anos, eu faço a mesma coisa e a única meta que consigo cumprir é a de “envelhecer”.
“Mentira.”
“Olha você negando de novo.”
“Não estou negando.”
“Não?”
Tuu, tuu, tuu. Acabou o crédito do telefone. Ufa. Às vezes, ela é cruel comigo.
Confesso que a ideia de ficar velha não me é de todo suculenta. Ainda bem que a gente se olha no espelho todos os dias e vê sempre a mesma cara. Assim, não dá pra notar mudanças drásticas na (de)composição da derme, leia-se: o surgimento das rugas. Já pensou se a gente só se visse de dez em dez anos? Seria um desmaio atrás do outro. Semana passada, mexendo na caixa de fotografias que guardo no fundo do armário, encontrei uma dos meus 15 anos. Eu quase não me reconheci. Ok, estava sofrível naquele vestido de tafetá cor-de-rosa, balonê. Mas a minha pele, como era lisinha, nem parecia esse tobogã de células mortas que é agora.
Dizem que não faz bem para o nosso ego ficar se autodepreciando. Quando eu encontrar o meu, que perdi no último fora que levei, vou perguntar pra ele se é verdade. No mais, tudo indo. Acho que fiz bem em vir para o Rio. Uns dizem que foi fuga, outros, que é uma busca. Eu digo que toda a fuga é uma busca e vice-versa. Só pra polemizar.
*Trecho de Sensações de Sofia, folhetim semanal publicado originalmente no site do Fantástico/Rede Globo, em 2004. Por Ana Kessler
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