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Feliz Dia dos Filhos

Por Ana Kessler


Eu não tenho pai. Mas já tive. Ele era alto, tinha feições fortes e espessos cabelos negros penteados para o lado. Usava um bigode largo, daqueles que dão gravidade aos momentos sérios e engrandecem um sorriso. Era justo e, mesmo que errasse, você podia ter certeza de que estava tentando fazer a coisa certa. Supervalorizava a honestidade, um bom caráter e um chopinho bem gelado.


Diz a minha mãe que ele dançava muito bem, era um pé de valsa de primeira. Eu mesma só recordo dos seus dedos valsando sobre o piano, ágeis, tocando para nós, filharada embevecida. Ex-escoteiro, adorava viajar, conhecer lugares novos, colocar o pé na estrada. Talvez por isso tenha partido tão cedo, para desbravar recantos outros do universo, naquele fim de tarde invernal do ano de 1990.


Cheguei em casa da rua e meu pai estava sentado na sala, ouvindo música com a minha mãe. Estavam alegres, nostálgicos, lembrando da época em que saíam para os bailes, bons tempos aqueles, antes do surgimento do tumor cerebral que o consumia, sem misericórdia, e à toda sua sabedoria. Será que um dia ele ficaria bom?, perguntou para a companheira. Claro que ficaria. Fui para o meu quarto, eles foram para o deles. Soltei meus livros sobre a escrivaninha e, então, ouvi gritos desesperados.


Hoje é Dia dos Pais. Lembrei da sua doce face desfigurada, dos seus olhos semicerrados, escondidos atrás dos óculos de descanso. De seus cabelos ralos, resultado das sessões de quimioterapia. De sua lentidão locomotora e de como esquecia do meu nome e fazia repetitivas perguntas. “Você vai sair?”, vou. “Você vai sair?”, vou, pai. “Filha, você vai sair?”, não, pai, não vou sair, vou ficar aqui com você. Sentava ao seu lado e segurava a sua mão, tentando reacender a chama que se apagava.


Fazia dez meses que lutávamos contra a terrível doença, que lentamente levava seu cabelo, sua visão, seus movimentos, nossa energia. Agora, surgem flashes daquelas semanas de dor, principalmente da dor alheia: mãe, avós, amigos, parentes, todos impotentes. Escuto o silêncio que se fazia quando não se falava no assunto, as pegadas que não se ouvia na penumbra que a casa se transformara. Recordo as esperanças desvanecendo lentamente, camufladas por uma força incansável para vencer o que nos vencia.

Lembro do dia em que ele se foi, como um pássaro que voa livre. Passarinho magro. Ouvi os gritos que vinham do quarto, saí correndo, que foi, que foi? Teu pai está sufocando, chama um médico, chama um médico!! Vagueei desnorteada pelos corredores do edifício, pedindo ajuda, clamando aos vizinhos: “Meu pai está morrendo!”. Com a respiração ofegante, se é que eu respirava, bati na Dr. Cláudia, no Dr. Rogério, não encontrei ninguém.


Em pânico, eu e minha mãe tentamos reanimá-lo, sem teoria nem prática, com uma precária respiração boca-a-boca. Lembro de como ele inchava cada vez mais por causa do ar que eu colocava pra dentro e não chegava até o pulmão por causa da embolia pulmonar. E de como se tornava, pouco a pouco, mais e mais roxo. Da baba verde que expelia por causa do chimarrão recém compartilhado com a esposa. Do cheiro agridoce que exalava. Da confusão de cores, roxo, verde, cinza. “Paizinho, paizinho!”, minha mãe gemia.


Equivocadamente, o deixamos sobre cama, superfície fofa, ao invés de deitá-lo no chão, que ajudaria nos primeiros-socorros. Quando minha mãe apertava seu peito, meu pai afundava com o colchão, anulando todo o esforço. Não sabíamos o que fazer. Em busca de respostas, mirei dentro de seus olhos agonizantes e, nunca vou esquecer, presenciei um pedido ajuda. De alguém que estava sufocando, pacificamente. Não gritou, não fez escândalos. Morreu como quem aceita um convite sem pensar duas vezes.

Eu estava sentada com a cabeça dele em meu colo. De repente, vi ele sair do corpo e passar para uma outra dimensão, inexplicavelmente. Foi como uma fumaça, uma luz branca que elevou-se e desapareceu no ar. Naquele momento, eu soube que ele tinha partido. Ficou uma massa amolecida e depois dura e fria. Morreu nos meus braços e eu não agradeço a Deus por isso. Foi pesado demais para minhas frágeis mãos suportarem.


Meu irmão chegou em casa e da soleira da porta do quarto ficou estático, olhando-nos. Caras conhecidas foram pipocando, surgindo nos quatro cantos da casa. Esperávamos por uma ambulância que nunca veio. E por um milagre. Alguém quebrou o silêncio, “não há mais nada a fazer”, então não fizemos nada. Nem chorar, choramos. A morte nos pega tão de surpresa que congela nossas reações. Ficamos todos ali, falando baixinho – baixinho por que?, arrastando desilusões. Ele tinha 45, mas sempre é cedo para se morrer. Mesmo com 90 anos. Por que o espírito não envelhece, apesar das rugas do corpo.


Minhas lágrimas desabrocharam somente ao carregar o caixão para a tumba. Acho que ali, todo mundo sucumbiu. Selamos as dores junto com selar da lápide. Enterramos dez meses de sofrimento junto com o meu pai. Nunca mais voltei ao cemitério, nem pra dizer “alô”. Não sou de bater papo com pedras de mármore. Se ele pode ouvir minha voz, me escuta de qualquer lugar. Como tem me escutado, até hoje. É só fechar os olhos, e ei-lo lembrando-me das coisas que realmente são importantes nessa vida, meus valores, meu caráter, minha integridade, minhas verdades, as pessoas que me cercam. É ele que me levanta quando caio. E com ele compartilho minhas conquistas.


Todos os dias é dia dos pais. Você já abraçou o seu hoje? Já ligou, deu bom dia? Pois não perca tempo, que o tempo passa. Leve o café na cama, abrace-o, beije-o, ajude-o a calçar o sapato. Diga “obrigado”, dedique a ele o seu trabalho de conclusão do mestrado, seja seu amigo. Escreva-lhe uma poesia. Acenda-lhe uma vela. Conte-lhe um segredo. Se foi com um celular que você o presenteou, anote o novo número na agenda, e abuse dele. Uma gravata? Ajude-o a fazer o nó. Um CD? Ouça com ele. Um sorriso? Escancare. Presentes são mais gostosos quando você está presente. Feliz dia dos filhos.


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